Cidadania também é para fazer juntos!

CIDADANIA TAMBÉM É PARA FAZER JUNTOS!

Associação é para fazer juntos. O título desta publicação, lançada pelo IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, no início de dezembro de 2011, já exprime o que será tratado em seus capítulos: que a criação de uma associação deve ser resultado de um processo coletivo e sua atuação deve ser marcada também pela participação efetiva de seus associados.


É o resultado de 10 anos de trabalho com organizações comunitárias e regionais indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, agricultores familiares e outros, aprofundando e atualizando o que já foi publicado anteriormente em Gestão de associações no dia-a-dia.

Este blog nasceu como um espaço para troca de conhecimentos e experiências de quem trabalha para o desenvolvimento de organizações comunitárias e outras.

A partir de 2018 passou a ser também um espaço para troca de ideias e experiências de fortalecimento da cidadania exercida no dia-a-dia, partilhando conhecimento e reflexões, produzindo e disseminando informações, participando de debates, dando sugestões, fazendo denúncias, estimulando a participação de mais pessoas na gestão das cidades onde vivem.

Quem se dispuser a publicar aqui suas reflexões e experiências pode enviar para jose.strabeli@gmail.com. Todas as postagens dos materiais enviados serão identificadas com o crédito de seus autores.

É estimulada a reprodução, publicação e uso dos materiais aqui publicados, desde que não seja para fins comerciais, bastando a citação da fonte.

José Strabeli




segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Como fundar uma associação - Parte I

Nos dias 07 a 13 de dezembro estive nas aldeias Kururuzinho (povo Kayabi), Mayrowi (povo Apiaká) e Teles Pires (povo Munduruku) para facilitar oficinas sobre associativismo. Os Kayabi têm uma associação há 12 anos e com pouca ou nenhuma atuação. Os Apiaká e Munduruku estão conversando há alguns anos para fundar a sua.

Utilizamos para reflexão os primeiros capítulos do livro Associação é para fazer juntos que descrevem o caminho percorrido pela “Comunidade Jequitibá”, começando por se perguntarem o que precisavam fazer que a organização tradicional da comunidade não era suficiente e precisavam de uma associação. Uma vez fundada, a associação ficaria encarregada das atividades de representação formal, gestão de atividades econômicas e projetos, comercialização de produtos, reivindicação e controle social de políticas públicas e não das que já são assumidas pela comunidade. Uma associação não deve se sobrepor nem substituir a organização comunitária, mas atuarem juntas, de forma complementar, uma fortalecendo a outra.

Foi dado bastante destaque para a importância da definição dos objetivos com a participação dos interessados em integrar a associação. Os objetivos são a motivação para a fundação da associação: “O que queremos fazer juntos?” Foi feito um primeiro exercício de elaboração, que deverá ser finalizado durante a elaboração da proposta de Estatuto e, principalmente, durante a sua aprovação pela assembleia.

Também começaram a definir a estrutura de funcionamento da associação, lembrando que têm a liberdade de definir a melhor forma de tomada de decisão e de execução das atividades e os órgãos mais adequados para isso, considerando a organização tradicional. Uma primeira proposta foi feita durante a oficina. Vão continuar conversando sobre isso até a realização da assembleia, quando deverá ser definida no Estatuto.

Em seguida foram apresentados os documentos necessários e os procedimentos para a fundação: Assembleia de Fundação e Eleição da Diretoria; registro da ata e do Estatuto no cartório e os cadastros na Secretaria da Receita Federal, INSS e Caixa Econômica Federal/FGTS. Foram apresentados também os documentos que precisam ser mantidos atualizados, a escrituração fiscal que deve ser feita e as declarações e informações aos órgãos do governo que precisam ser enviadas regularmente, necessitando para isso da contratação de um contador.

Foi criado por cada povo um grupo de mobilização das comunidades para esclarecer e motivar as pessoas a participarem do processo de fundação da associação, buscar informações no cartório sobre os documentos exigidos e preço para o registro; identificar, conversar e obter informações sobre a contratação de um contador, para ajudar nos cadastros e, depois, manter atualizadas a escrituração fiscal e as declarações da associação. Esse mesmo grupo participará, em janeiro de 2015, de outra oficina nas mesmas aldeias sobre aspectos legais e gerenciais para que tenham as informações básicas de como “cuidar” da associação.

Está prevista para março a elaboração de uma proposta de Estatuto com um grupo de lideranças, que deverá ser levada para discussão e aprovação na Assembleia, a ser realizada em seguida. Foi ressaltado que a proposta de Estatuto deve ser bem discutida, em cada artigo, porque ele não é só um documento para ser registrado no cartório, mas é “a constituição da associação”, onde estão definidos os objetivos, estrutura de gestão, direitos e deveres dos associados, etc. É preciso que esteja claro e de acordo com a vontade das pessoas que querem fundar a associação, respeitadas as exigências legais. Foi lido e explicado o capítulo do Código Civil referente às associações, para terem conhecimento dessas exigências e também da grande abertura que a lei deixa para definirem da maneira que preferirem características importantes da organização.


Os participantes se manifestaram algumas vezes, demonstrando estar claro que a associação é uma organização da comunidade e só se desenvolverá com a comunidade organizada nela. Comunidade esclarecida, motivada, participando processo e disposta a trabalhar junta é um bom começo. “Associação é para fazer juntos, não tem outro jeito!”

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O que não é possível conseguir com uma associação?

Além das associações comunitárias que são criadas por demanda externa como viabilização de políticas públicas ou programas de financiamento do governo ou programas e projetos de organizações privadas, vez ou outra me deparo com motivações para a fundação de associações comunitárias que na minha avaliação não levarão aos resultados esperados. É como se uma associação tivesse vida própria e resolvesse por si só os problemas sem depender daqueles que fazem parte dela:

A comunidade é desorganizada. Com a associação vai se organizar melhor
Já refletimos aqui que a organização comunitária é a base para a organização da associação e que a estrutura de funcionamento desta deve contemplar a forma de organização, de tomada de decisão e execução de tarefas daquela. Se a comunidade não está bem organizada é preciso que seja feito um trabalho de fortalecimento comunitário para que se organize melhor. Só depois disso é possível pensar em fundar uma associação, se houver a necessidade de uma organização formal para atingir os objetivos a que a comunidade se propõe. Caso contrário, as fragilidades da organização comunitária se refletirão também na associação.

Há conflitos e disputa de liderança. Uma associação ajudará a resolver isso
Sendo uma organização da comunidade, integrada e dirigida pelas mesmas pessoas, os conflitos e disputas de poder irão para a associação também. Poderão até mesmo ficar mais acirrados, uma vez que seus dirigentes terão um “poder” legal, conferido pela organização formal. Poderão crescer também na proporção da disponibilidade de recursos, que levam à distribuição de benefícios, além da contratação de pessoas com salários ou ajuda de custo.

As lideranças da comunidade demandam muitas coisas do técnico. Com a associação terão mais autonomia para resolver suas demandas sozinhos
A dependência é alimentada muitas vezes pelos próprios técnicos que fazem as coisas pelas pessoas ao invés de fazer com elas para que aprendam. A acomodação das lideranças ao encontrar uma pessoa que faça as coisas para elas e as livra do trabalho e da responsabilidade pelo resultado das ações deve ser evitada por quem trabalha para o desenvolvimento e empoderamento comunitário. Sem uma mudança de postura uma associação repetirá os mesmos vícios, aumentando ainda mais as demandas feitas.

Associação é ferramenta e quem dá vida à ferramenta são as mãos que a manejam. E para que ela seja uma boa ferramenta, precisa ser soberana:

·         Essa organização se esforça para conhecer e trabalhar a partir da sua própria intenção. Ela funciona “a partir de” e “com” princípios e valores claros, tendo a coragem de se manter fiel a eles;

·         É uma expressão autêntica da vontade e da voz dos seus próprios constituintes. Ela pode prestar serviços, mas não se presta a servir aos propósitos de outra organização e, embora possa aceitar financiamento, não é um veículo de desenvolvimento dos projetos financiados pelas agências de fora;

·         Uma organização soberana é culturalmente e estruturalmente única: não um clone de algumas “melhores práticas” de um modelo externo;

·         Uma organização soberana é politicamente consciente, conhece seus direitos e responsabilidades e compreende as relações de poder de que faz parte;

·         Uma organização soberana é capaz de cooperar e trabalhar com colegas e parceiros, sem perder sua identidade. Soberania não denota um comportamento isolado, embora possa haver fases de independência, de desenvolvimento interno e de busca pela própria identidade, antes de se abrir para a colaboração;


·         Soberania é tanto uma qualidade, quanto um processo de aprendizagem contínua. A capacidade de aprender e de se adaptar vai determinar a sua soberania em um mundo mutante e volátil. Portanto, vai determinar o crescimento de sua eficácia. Uma organização soberana aprende com muitas e variadas fontes, principalmente a partir de sua própria experiência, mas também por meio de suas diversas relações horizontais de aprendizagem. (Guia Pés Descalços)

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Organização Informal, Organização Formal, Plano de Ação e Projetos

Essas coisas podem não ter nada em comum, mas também podem ter uma relação íntima entre si. Fui convidado para facilitar uma oficina em duas partes: uma primeira para esclarecer os estatutos de duas organizações e a outra para capacitar o grupo em elaboração de projetos.

É muito importante que os associados e, principalmente, diretores e conselheiros tenham conhecimento suficiente sobre as regras de funcionamento da associação definidas em seu estatuto. A leitura e os debates foram bastante esclarecedores. Além dos aspectos legais e solução de dúvidas sobre termos jurídicos, refletimos sobre o papel e importância das associações, inclusive das duas associações em questão.

Uma das organizações, mais antiga, com o nome Conselho de Aldeias tem até hoje em seu nome uma representatividade que os indígenas daquele povo não querem abrir mão, mesmo que, depois de alguns anos de convênio com a Funasa, como tantas outras associações indígenas, tenha ficado inadimplente e desde então não tenha captado recursos ou movimentado contas bancárias. Sem poder saldar as dívidas, não pode ser dissolvida. A solução encontrada para viabilizá-la financeiramente foi fundar outra associação. Desta, apenas um grupo pequeno de pessoas faz parte. No entanto, a primeira associação continua tendo diretorias e conselhos fiscais eleitos, mesmo que não tenha mais função executiva e nem tenha recursos para ter seu uso fiscalizado.

A segunda associação, como foi criada apenas para a viabilização financeira da primeira, tem os mesmos objetivos e os poucos associados que participaram da assembleia de sua fundação.

Alguns participantes da oficina externaram a dúvida sobre a representatividade dessas organizações. A que seria mais representativa tem seu funcionamento limitado. A segunda, poucos associados. Chegaram a dizer que não se sentiam representados suficientemente por nenhuma das duas.

Sugeri que rediscutissem os papéis das duas organizações. A primeira poderia ser repensada como uma articulação de lideranças, para definir questões estratégicas, independentemente de seu registro legal. Seus objetivos, estrutura e funcionamento poderiam ser definidos em um Regimento Interno e funcionaria de maneira informal, porém, com toda a legitimidade e força que uma organização de lideranças tradicionais pode ter. A segunda também deveria ter seus objetivos revistos para contemplar todas as questões significativas para aquelas comunidades e mobilizar o máximo possível de pessoas, abrindo-se para receber todos os associados que estivessem dispostos a trabalhar juntos para atingir seus objetivos e, assim, continuar sendo a organização executiva das decisões estratégicas do Conselho.

Foram lembrados alguns casos em que essa opção foi feita, propiciando um diálogo entre organizações tradicionais e não tradicionais, formais e informais, diminuindo significativamente as possibilidades de conflitos entre caciques e diretores de associações e colocando-os em uma posição complementar e colaborativa, conforme já publicado aqui algumas vezes.

O primeiro passo foi dado na própria oficina, sendo formada uma comissão para elaborar uma proposta de regimento interno para o Conselho. A reforma do estatuto da outra organização será pensada posteriormente.

Na segunda parte da oficina, conversamos sobre o que é um projeto como plano de futuro e não só como o documento para pedido de um financiamento. Não esquecemos de falar que todas as comunidades têm muitas potencialidades a serem valorizadas e parcerias, não necessariamente financeiras a serem aproveitadas. Em seguida, tratados dos elementos básicos de um projeto.

Divididos em três grupos, os participantes foram orientados a rever o Plano de Ação, elaborado há algum tempo, de forma participativa com as aldeias e suas lideranças tradicionais, dando a ele um valor mobilizador e um peso político muito grandes. Cada grupo escolheu um dos problemas ali apresentados com suas atividades e que ainda não haviam sido contemplados com financiamentos e nem as comunidades tinham recursos próprios para resolvê-los.

Observando alguns editais de projetos, verificaram que os financiadores esperam cada vez mais projetos inovadores, replicáveis, com ampla participação comunitária desde a discussão do problema até sua avaliação, que valorizem as potencialidades das comunidades e as oportunidades oferecidas por seus parceiros privados e públicos e sejam sustentáveis em sua continuidade.

Os grupos foram elaborando os elementos básicos e apresentando aos demais participantes para sugestões e orientações do facilitador. Ao final, apresentaram o projeto como um todo para que fosse verificada não só a elaboração de cada elemento, como a coerência entre eles.


Todos saíram cientes de que o aprendizado da elaboração de projetos é um processo que exige cada vez mais conhecimentos técnicos e, sobretudo, muita prática, mas satisfeitos com os avanços que haviam conquistado. O diálogo da associação com as comunidades e lideranças tradicionais, o papel político e estratégico do Conselho e o papel executivo da associação também ficaram mais claros.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Comunidades querem a associação mais presente e atuante em sua base

Recentemente fui convidado a participar da assembleia de uma associação que elegeria a nova diretoria e conselho deliberativo e fiscal. Fundada em 2004, a primeira diretoria, em duas gestões, estruturou um escritório na cidade com ajuda de parceiros e executou alguns projetos; tinha sua agenda voltada mais para eventos nacionais e internacionais do que nas comunidades. A segunda diretoria, que terminava agora seu mandato, manteve o escritório na cidade, fortaleceu algumas parcerias, participa de vários conselhos de políticas públicas, como saúde e educação, conferência estadual de transparência, faz reivindicações ao governo e denúncias ao Ministério Público e ainda se aproximou das lideranças, estimulando e apoiando a sua participação na gestão da associação e discussões por ela encabeçadas, o que foi um avanço em relação às gestões anteriores.

O estatuto não é muito claro em seus objetivos com relação às melhorias que a associação se propõe a viabilizar para as comunidades: “defender direitos e interesses coletivos e individuais; buscar parcerias para difusão de ideias, elementos da cultura, hábitos e tradições da comunidade; estimular e propor projetos que visem buscar alternativas de desenvolvimento sustentável;  estimular e promover ações nas áreas de educação, saúde e meio ambiente; estimular ações que visem a fiscalização e proteção da terra; monitorar e fiscalizar as ações de organizações públicas e privadas quando relacionadas aos interesses das comunidades. No entanto, fica claro em conversas e reuniões que as pessoas esperam benefícios, às vezes de forma distorcida, em projetos que distribuam bens de consumo que necessitam.

O relacionamento da diretoria foi mais estreito com as lideranças, encarregadas de repassar as informações para as comunidades. Não foram esclarecidas suficientemente de que o papel da associação não é prover bens de consumo. Também não ficou claro o que a associação traria, então, em termos de benefícios, de melhoria da qualidade de vida. Não foram mobilizados para priorizar e planejar coletivamente as ações da associação ou para rever e tornar mais significativos os seus objetivos. Também não foram mobilizadas e organizadas para trabalharem juntos para atingir seus objetivos, mantendo a ideia equivocada de que é “a associação”, ou seja, a diretoria, quem deve fazer tudo.

Em um Diagnóstico Organizacional, realizado em 2012, foi levantado que os projetos desenvolvidos pela associação ou em parceria com outras organizações estiveram voltados para a formação de gestores, construção de casa tradicional, coleta de materiais tradicionais, implantação de uma estação digital (na cidade), realização de diagnósticos etnoambientais, fortalecimento político e despesas institucionais. Os diretores e lideranças presentes disseram que nenhuma atividade tem sido desenvolvida nas comunidades e com a participação delas.

Para a eleição da diretoria e conselho apresentaram-se 4 chapas, sendo uma delas a da diretoria em exercício com algumas alterações. Este foi um sinal interessante. Mais surpreendente ainda foi que a chapa “da situação” recebeu poucos votos, enquanto uma “concorrente” foi eleita com grande vantagem. O cabeça da chapa vencedora presta pequenos serviços à comunidade e, mesmo cobrando, auxilia muitas pessoas em suas atividades cotidianas.

Depois de eleito, disse que não pretende morar na cidade. Vai ficar no escritório o tempo necessário para atender às demandas administrativas e políticas, mas pretende ficar também uma parte de cada mês nas comunidades, conversando, ouvindo, planejando, avaliando e trabalhando junto.

Me lembrei do capitulo “Deu bicho no jequitibá”, do livro Associação é para fazer juntos, quando é dito que:


— Esse foi o problema de vocês. Tiraram as raízes da associação da nossa comunidade e levaram para a cidade. Lá ela não cresceu bem e ficou doente. Essa é uma lição para todos nós. A Associação Jequitibá pode ter um tronco alto, que conquiste fama e prestígio. Pode ter galhos que se espalhem por várias cidades do nosso estado, do Brasil e mesmo de outros países, mas não pode jamais deixar de ter suas raízes muito bem fincadas na terra fértil da nossa comunidade. É aqui que tem terra boa para ela crescer, não em outro lugar.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

E como se faz desenvolvimento comunitário?

Em uma reunião com coordenadores de uma organização para a qual presto consultorias, depois de refletirmos sobre a impossibilidade de desenvolver associações sem ao mesmo tempo investir no desenvolvimento comunitário, fui confrontado com a seguinte questão: Como alguém que trabalha com o desenvolvimento de associações pode acreditar tão pouco nelas? Respondi que acredito muito nas associações, mas não descoladas de sua base comunitária. Como exposto no livro Associação é para fazer juntos: uma associação é como uma árvore e para que ela cresça saudável precisa ter suas raízes bem fincadas na comunidade. É nela que há solo fértil necessário para o seu desenvolvimento. Como tenho ouvido em alguns lugares: sem a comunidade não existe associação.

Me perguntou também se agora deveríamos deixar de investir nas associações e investir mais nas comunidades. Não se trata de ceder ao limite da dicotomia “isso ou aquilo”, mas avançarmos para uma abordagem que considere o desenvolvimento das associações como de fato é, indissociável do desenvolvimento comunitário.

Outro coordenador presente me perguntou: E como se faz desenvolvimento comunitário? Respondi a ele que a pergunta era bastante complexa para ser respondida rapidamente, mas que voltaríamos a falar sobre isso.

Segundo Cristhiane da Graça Amancio em seu artigo “Educação Popular e Intervenção Comunitária: Contribuições para a reflexão sobre empoderamento”, quando falamos de participação social, valorização do conhecimento popular e alternativas pedagógicas que promovam a emancipação de sujeitos críticos, estamos tratando de educação popular e esta não tem em sua fundamentação pedagógica um programa de referência que sirva de eixo básico de ações e não existem conteúdos pré-estabelecidos a serem ensinados.

Não ter uma “receita” é o grande diferencial dessa pedagogia. O processo educativo com o grupo ou comunidade deverá ser construído em conjunto por todos os atores envolvidos partindo de sua realidade, como se relacionam com ela, suas necessidades, suas capacidades, porque não existe metodologias de desenvolvimento local e sim metodologias que possam apoiar a tomada de decisão, de reflexão e fortalecer os laços comunitários. Na perspectiva da educação popular, todo interventor assume um papel de fato educativo onde os sujeitos populares não são objetos de sua intervenção. Eles são enxergados como agentes de mudança tal como esse interventor.

É preciso identificar grupos com interesses comuns, orientar a comunidade na identificação dos problemas e promover a organização inicial do grupo, que por conseguinte tem um papel totalmente ativo, diagnosticando e estabelecendo meios para solucionar os problemas bem como suas causas.

Cristhiane descreve cinco subprocessos do que chama de abordagem educacional, no qual tanto o agente externo quanto o grupo aprendem: o desenvolvimento da consciência da realidade onde os indivíduos passam a compreender a realidade social que molda suas vidas; participação; organização ou estruturação interna do grupo; solidariedade, no sentido da predisposição para a cooperação entre os membros do grupo, que podem ser estendidas a outros grupos e articulação, que visa aumentar o poder de contraposição dos grupos.

O papel do mediador ou do educador, de acordo com Paulo Freire, será o de dar força e jeito para que esses grupos populares transformem de fato o dia de amanhã, têm o papel de instigadores com uma contribuição fundamental a dar, estimulando a autoconfiança do grupo e dando-lhe subsídios para adquirirem autonomia, conhecimento e consequentemente poder de contraposição. Círculos de reflexão vão propiciar que as pessoas se reúnam e reflitam coletivamente sobre seus problemas e suas histórias individuais permitindo que sejam tomadas decisões coletivas, uma postura coletiva. Devem levar a recuperação da autoestima para romperem com formas antigas de relação de dependência e terem consciência da capacidade que possuem de transformar sua realidade.

Compreender que as necessidades poderão ser satisfeitas a medida que o grupo se tornar mais coeso, mais solidário e mais reflexivo são caminhos possíveis onde esses indivíduos começam a dimensionar suas próprias potencialidades e limites.

Quando não é estabelecida uma relação “dialógica”, como conceituou Paulo Freire, o que se cria é uma dependência de assessores sempre intervindo na realidade das comunidades. Como consequência, o que de forma mais comum tem acontecido é das duas uma: ou a comunidade aceita passivamente as referências e “verdades” dos interventores ou, na ausência deles, se sentem abandonados. Até esse momento temos sido responsáveis pelas escolhas destas comunidades ou temos servido como apoio para ajuda-las a escolher e a viabilizar suas decisões?

Fui questionado também a respeito de muitas lideranças comunitárias que passam a ser também autoritárias ou ausentes de suas comunidades, se dedicando mais a usufruir do prestígio conquistado fora e dos benefícios trazidos por isso. A reflexão sobre o papel e as diferentes características de um líder também merecem um cuidado especial para que ele não passe a “encarnar o opressor”, a confundir a situação de evidência com uma prática de pensar e fazer pelos outros companheiros, o que, de forma preocupante, não o permite mais agir com eles, deixando de agir como um ser complexo, de tecer junto.

A educação popular como pedagogia para o desenvolvimento comunitário dá uma nova perspectiva para o trabalho de organizações governamentais e não governamentais. Em primeiro lugar, não comporta ações pontuais e previamente decididas. Exige tempo e dedicação para estabelecer relações de confiança, segue o ritmo da própria comunidade para fortalecer seu tecido social. Em segundo lugar, desloca o centro das decisões das agências e seus técnicos para as comunidades. Em contrapartida, qual não será a legitimidade e capacidade de mudanças que passarão a ter os projetos de educação, cultura, atividades sustentáveis de geração de renda, entre outros, apoiados por essas organizações, que germinaram, cresceram e frutificaram em um ambiente de crescente empoderamento?


E as associações? “Associações são ferramentas.” As comunidades saberão quando vão precisar delas.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O mais importante é o desenvolvimento das associações ou da organização comunitária?

Este é um falso dilema, como aquele de uma antiga propaganda dos biscoitos Tostines: "É fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é mais fresquinho?" Duas perguntas não me saem do pensamento quando facilito uma oficina ou participo de discussões sobre a organização de associações: Toda comunidade precisa ter uma associação? Para que formalizar uma associação da comunidade?

Lembro sempre que até o Código Civil deixa claro que as associações se constituem de pessoas que se organizem por objetivos. Então a primeira coisa a se pensar é quais são as necessidades da comunidade? Quais mudanças querem provocar na situação atual, quais objetivos querem atingir? A segunda coisa é quem são as pessoas que estão dispostas a trabalhar juntas para atingir esses objetivos?

Comparando a associação com ferramenta, resta ainda ter claro se essa organização formal é a melhor forma para unir as pessoas e atingir seus objetivos. O que se pretende fazer que a organização informal da comunidade não é suficiente e é necessário formalizar uma associação? A ideia de que associações são meios fáceis de conseguir recursos tem se mostrado insustentável, já que a grande maioria das associações comunitárias nunca conseguiram aprovar um projeto ou conseguem isso pontualmente, sendo raras ou inexistentes as que tenham se mantido regularmente em funcionamento através dessa fonte de recursos.

As organizações coletivas têm como principal mérito mobilizar e articular os recursos existentes na comunidade, a capacidade de um grupo de pessoas pensar juntos para encontrar as melhores soluções, as diferentes habilidades de seus membros e a capacidade conjunta de trabalho. Para essa mobilização é necessário ter objetivos claros e significativos para todos. A união, que muitas lideranças reclamam não existir, só será alcançada se os objetivos forem definidos participativamente e forem importantes para o grupo. Esse esforço comunitário pode ser complementado por parcerias e financiamentos naquilo que os recursos próprios da comunidade não forem suficientes.

Nesta linha de pensamento, o foco deixa de ser a fundação ou não de uma associação e passa a ser o fortalecimento da organização comunitária. Se ela será formalizada em uma associação ou cooperativa passa a ser uma questão secundária, a ser avaliada quando a necessidade de ter uma personalidade jurídica surgir.

Em uma oficina sobre associativismo que facilitei recentemente, os participantes demonstraram pouco interesse sobre as questões técnicas e legais de uma associação. A participação do grupo era quase nenhuma. A razão para essa quase apatia ficou clara quando se falou da associação como organização da comunidade. Nesse ponto o interesse e a participação aumentaram significativamente. A primeira questão era se eles de fato formavam uma comunidade. Alguns disseram que:

·         Nós não somos uma comunidade porque não trabalhamos juntos. Não pensamos juntos. É só o nome. Não temos nada juntos. É cada um por si.”

·         “Se eu quero uma coisa, eu vou trabalhar e vou comprar. Agora, na hora de trabalhar ou pagar para todo mundo, não vão querer.”

Nesse momento eu cheguei a propor deixarmos de lado a discussão sobre associação e focarmos na organização da comunidade. Estava claro que nenhuma associação se desenvolveria e funcionaria bem com um grupo com um tecido social tão frágil. 

Continuamos com a programação, mas antes, refletimos que um grupo de pessoas ou famílias não formam uma comunidade apenas porque moram no mesmo lugar. O que define uma comunidade são as relações entre as pessoas, os interesses comuns, o trabalho conjunto. Viver e trabalhar em comunidade não é fácil, porque as pessoas têm pensamentos diferentes, interesses diferentes. Não devemos pensar que tudo tem que ser decidido e feito coletivamente. Algumas coisas sempre serão feitas em família ou individualmente. Outras, que se referem a problemas comuns, devem ser tratadas coletivamente. Para essas é preciso chegar a um consenso, uma decisão que seja boa para todos, sem privilegiar o interesse ou o jeito de um ou outro. É preciso focar naquilo que é comum e não naquilo que é diferente. Outra coisa é que dificilmente se consegue que todos participem. Tem gente que não gosta de trabalhar junto, que prefere ficar sozinho. Isso não deve impedir o desenvolvimento do trabalho coletivo, esperando que todos se unam. É preciso fazer com quem está disposto e se pode realmente contar.

Essa comunidade já havia sido estimulada a fundar uma associação. Chegou a ser aprovado um estatuto, mas nunca foi registrado. Ao final da oficina, o cacique disse que “agora é comigo e com a comunidade. Nós vamos conversar e ver o que fazer.”

Não é sempre que a fundação de uma associação contribui para o fortalecimento da comunidade. Há situações em que atrapalha. Há muitos casos em que uma comunidade, razoavelmente bem organizada de sua forma tradicional, vê surgir conflitos internos quando a associação é fundada e seus diretores passam a competir com as lideranças tradicionais e querendo se sobrepor a elas porque negociam projetos, parcerias, participam de discussões de políticas públicas.

Durante o processo de planejamento em uma assembleia de associação indígena, o presidente recém eleito perguntou o que é atribuição da associação e o que é da comunidade. Devolvi a pergunta: Qual é o papel da associação? Em quais situações a comunidade precisa de sua representação formal?

Relataram que a comunidade, através de suas lideranças, tem representação em vários conselhos que tratam de políticas públicas importantes para eles. No entanto, é possível que a associação seja demandada em caso de reivindicações formais e representações junto aos órgãos governamentais ou do judiciário. Também há perspectivas da associação assumir tarefas como a gestão da comercialização de produtos, buscar recursos e parceiros para suas atividades.

Disseram também que não têm sido feitas reuniões na aldeia para discutir as questões tratadas nos conselhos e levar para essas instâncias suas propostas, denúncias, cobranças e reivindicações, o que contribuiria para melhorar a organização comunitária, dar legitimidade e força aos seus representantes e melhorar a qualidade das políticas públicas para a comunidade.

Foi refletido que aquela aldeia, como muitas outras, tem duas formas de organização: sua organização tradicional e sua organização formal, a associação. 

As duas formas de organização devem ser fortalecidas para que cada uma cumpra bem as suas atribuições. Tudo o que sempre foi feito e o que vem sendo feito mais recentemente pelas lideranças tradicionais, porque não há demanda por representação formal, deve continuar sendo feito por ela e quando for exigida uma pessoa jurídica, a associação assume, em colaboração com as lideranças da comunidade. 

Uma comunidade bem organizada, articulada e mobilizada, é a base necessária para uma associação forte. A associação é necessária para a comunidade sempre que a formalização é exigida e, tendo sucesso em suas atividades, contribui para o fortalecimento da organização comunitária, que se sente mais motivada ao trabalho coletivo em novas frentes. 

Dessa forma, o trabalho colaborativo e compartilhado entre a associação e a comunidade é a melhor maneira de melhorar as condições de vida na aldeia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os impactos da participação no Desenvolvimento Organizacional

Nos dias 02 a 12 de setembro estive nas terras indígenas Xipaya e Kuruaya, em Altamira-PA junto com a equipe local da Verthic. Na Aldeia Tukaya facilitei uma oficina sobre aspectos legais e organizacionais de associações. Na Aldeia Curuá, já havíamos realizado essa oficina em julho e voltamos para facilitar a elaboração participativa de uma proposta de reforma do estatuto da associação e apoiar a realização de uma Assembleia Geral Extraordinária para aprovar a reforma do estatuto e eleger nova Diretoria e Conselho Fiscal e definir linhas de ação e objetivos para o trabalho durante a nova gestão. Na Aldeia Tukamã realizamos as três atividades, que utilizo como exemplo para falar dos impactos da abordagem utilizada, em especial do enfoque participativo.


A oficina foi iniciada com o debate sobre as motivações que levaram à fundação da associação da comunidade: o que desejavam fazer que a associação era necessária. A partir daí foi falado da associação como organização comunitária, que deve ter objetivos claros e associados dispostos a trabalhar juntos para atingí-los, utilizando essa forma de organização como “ferramenta”. Para não sobrecarregar ninguém e potencializar a capacidade de trabalho, é fundamental que haja divisão de tarefas, envolvendo os associados e não só os diretores. Essas reflexões tem contribuído muito para desmistificar a associação como “um ente” capaz de resolver os problemas da comunidade sem que ninguém precise se esforçar ou como uma forma quase mágica de se conseguir recursos para tudo o que se deseja. Ao mesmo tempo reforça a ideia de que a união de esforços, capacidades e criatividade dos associados para a solução dos problemas ou conquista de melhorias é o grande diferencial de uma associação. Isso foi retomado ao ser tratados os objetivos: natureza dos objetivos, como defini-los e sua importância para orientar o planejamento e todas as ações da associação. Lendo os objetivos no estatuto da associação, sentiram a necessidade de discutir melhor para definir objetivos que realmente sejam significativos para eles, que mobilizem a comunidade e motivem os associados a trabalharem juntos.

A discussão sobre os órgãos de administração da associação, ao mesmo tempo em que trouxe uma reflexão sobre como a associação estava estruturada e como estava funcionando, suscitou um olhar sobre as alternativas, tanto no que se refere a como melhorar o funcionamento dos órgãos existentes, mas também de como criar uma estrutura de decisão e gestão mais apropriada para cada povo ou comunidade. A leitura e explicação do capítulo do Código Civil sobre associações foi importante para as pessoas terem segurança jurídica e abandonarem o que se tornou praticamente um paradigma (lamentavelmente tanto entre lideranças quanto entre técnicos de órgãos governamentais e organizações privadas) de que todas as associações devem ter a mesma estrutura e funcionamento “porque a lei exige que seja assim”. Constataram o quanto a legislação deixa em aberto para decisão dos associados, que devem definir no estatuto.

Assim foram estimulados a repensar o papel e importância da associação na comunidade e a rever o estatuto como quem elabora “a constituição” de sua organização. Esse estímulo foi muito significativo para a elaboração da proposta de reforma do estatuto, feita em seguida.


Também foram abordados na oficina os aspectos legais, como os documentos que precisam ser mantidos atualizados, os requisitos para manter a imunidade do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, as declarações e informações aos órgãos do governo, a contratação de pessoal e a necessidade de ter um contador.

A elaboração da proposta de reforma do estatuto se deu com ampla participação de diretores e associados. Com um projetos multimídia, o estatuto vigente foi projetado para que todos pudessem acompanhar a leitura e as alterações propostas. Cada artigo foi lido, explicado e alterado com as sugestões dos participantes e orientações do facilitador. A definição dos objetivos foi uma das partes que mais demandou tempo e discussões. O resultado foi um estatuto mais claro para todos e uma apropriação maior da associação como uma organização da comunidade e não como um “corpo estranho” em seu meio.


Na preparação da assembleia junto com a presidente e uma liderança da aldeia, sugerimos a apresentação de dança ou música tradicionais, também como uma forma simbólica de demonstrar que aquela era uma associação indígena e não apenas “uma organização de branco” como muitos dizem e sentem. Fiquei alegremente surpreso ao chegar no salão comunitário onde seria realizada a assembleia e verificar que quase todos estavam pintados e com “adereços” típicos de sua cultura (as aspas são em função do depoimento de um indígena em outra ocasião: “Aí falam que a gente está enfeitado. Isso não é enfeite. É a nossa roupa.”). Após a abertura apresentaram uma dança.

A proposta de reforma do estatuto foi apresentada pela presidente, também com projeção, para que todos acompanhassem. Como quase todos os participantes da assembleia tinham participado da elaboração da proposta, não houve questionamentos e foi aprovada por unanimidade. Os aplausos espontâneos que se seguiram à proclamação da aprovação demonstraram o sentimento dos participantes com relação ao novo estatuto. Perguntei a uma liderança sobre as assembleias anteriores e ele me respondeu: “assembleia, assim, com a comunidade discutindo, é a primeira vez.” Em seguida os candidatos aos cargos da Diretoria e do Conselho Fiscal foram apresentados e eleitos por aclamação, cargo a cargo, já que em alguns casos tinha mais de um candidato. A Diretoria e o Conselho Fiscal recém eleitos foram saudados com mais uma dança.

Eu havia sugerido no início dos trabalhos que fossem definidos também algumas linhas de ação prioritárias com seus objetivos para orientar o trabalho da diretoria que fosse eleita: “a diretoria, depois de eleita, precisa saber o que fazer e, se associação é para fazer juntos, é preciso que os associados definam coletivamente o que deve ser feito.” A proposta foi aceita e o segundo dia da assembleia foi dedicado a isso. Dividiram-se em dois grupos para responderem: O que é preciso melhorar na nossa aldeia? O que vamos fazer para conseguir isso? As conclusões dos grupos foram apresentadas e, para organizar melhor as propostas, sugeri inseri-las em uma Matriz de Planejamento. Nela foram definidas linhas de ação, objetivos gerais e objetivos específicos. Foram orientados e contarão com apoio da equipe do Programa de Fortalecimento Institucional para concluírem a matriz, definindo seus demais elementos.

Foi muito significativa a discussão feita durante o planejamento sobre o papel da associação e da organização informal da comunidade, mas esse assunto, deixo para tratar na próxima postagem, porque ele também merece bastante atenção.


Os depoimentos ao final dos trabalhos demonstraram o novo ânimo de todos para trabalharem juntos, fortalecerem a associação e a organização comunitária, sem deixar de ter consciência de que há muito o que fazer e de que o caminho é longo. Disseram que contam com a continuidade do processo formativo e orientações em seu trabalho, o que foi confirmado pela equipe, que renovou sua disposição para isso.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Uma ideia publicada é como um pássaro batendo asas. E essa é a graça!

Alguém já escreveu que ao terminar um livro e publicar o autor perde o controle sobre ele e o que as pessoas vão pensar e dizer sobre a sua obra. Porque ela deixa de ser sua e passa a ser dos leitores.

Já relatei aqui algumas vezes como o livro Associação é para fazer juntos tem sido utilizado para leituras dialogadas em cursos e oficinas, treinamento de equipe, leituras e debates em comunidades e peças de teatro amador apresentadas em comunidades e assembleias de associações.

Recentemente fui alegremente surpreendido ao saber que também um livro anterior, Gestão de associações no dia-a-dia, publicado pelo Instituto Socioambiental em 2005, foi utilizado para criação de peça de teatro em 2006, apresentada nas oficinas de capacitação das associações apoiadas pela Brazil Foundation.

Encontrei essa informação na publicação “Brazil, Brasil – 10 anos, uma ideia, muitas histórias”:

Como parte dos encontros de capacitação há a encenação de peças pelo grupo Artistas
de Nós. No repertório da companhia estão seis espetáculos: “Lá no Morro Azul”, “Avaliação, por qual caminho eu vou?”, “Sustentabilidade, do que você precisa?”, “Para que serve uma ONG” e “No Morro Azul moram meus sonhos”, direcionados para os gestores das ONGs, e “O buraco”, voltado para funcionários de empresas que atuam como voluntários em projetos sociais. “A BrazilFoundation percebeu que o teatro poderia ser uma importante ferramenta para facilitar o aprendizado e fixar determinados temas abordados durante os seus cursos de treinamento”, escreve a historiadora Márcia de
Paiva.

A ideia surgiu em 2006, de forma espontânea. Ao se deparar com o livro “Gestão de associações no dia a dia”, de José Strabeli, que falava de um grupo que queria virar uma ONG, Clarissa Worcman, coordenadora de monitoramento da fundação, pensou: “Isso dá uma peça.” Foi além. Quem sabe o espetáculo não poderia servir para abrir as oficinas de capacitação? Afinal, o livro mostrava as dificuldades de se criar uma associação, com toda a burocracia envolvida. Aos poucos, os personagens foram ganhando vida. Já com o texto delineado, Clarissa chamou dois amigos que conheceu quanto estudava teatro – os atores Ricardo Lyra, o Lirinha, e Márcia Alves – e começou a ensaiar. E assim surgiu “Lá no Morro Azul”, que trata de maneira bem-humorada – como todas as peças – dos desafios dos moradores para trabalhar em conjunto e melhorar a vida da comunidade. – Na nossa primeira apresentação, havia poucos gestores, umas dez pessoas. Estávamos muito nervosos e com a sensação: “Será que isso vai funcionar?” – lembra Clarissa. Funcionou.

“As peças abordam, com uma linguagem lúdica, questões do cotidiano na área
social, gerando empatia e identificação com o público, lançando ideias e despertando
debates. O teatro, efetivamente, tornou-se uma ferramenta fundamental na sensibilização
dos gestores, motivando a reflexão e a apropriação dos conhecimentos, de forma
geralmente articulada às oficinas. As apresentações teatrais ‘abrem a cabeça e o
coração das pessoas’ e vêm revelando um efeito pedagógico impressionante”, atestam
Caio Silveira e Ricardo Mello.


As peças incorporam questões comuns às organizações. Para escrever, Clarissa recolhe
material das visitas às comunidades, do monitoramento, da capacitação e do contato
com os gestores. Não raro a plateia se manifesta com risos e frases como “me vi ali”,
“aquela pessoa sou eu”, “é assim mesmo”, “é normal isso acontecer”. – As pessoas se identificam, se sentem representadas – constata ela.

Fiquei muito feliz em saber do uso do livro para elaborar e apresentar “Lá no Morro Azul” para a capacitação de gestores de associações. Isso é um estímulo para que outras pessoas utilizem também do teatro para diferentes processos de desenvolvimento comunitário e organizacional.


É um estímulo também para que as pessoas não guardem suas ideias para si, não as mantenham “engaioladas” pelo direito autoral, mas "deixe-as voar" para que todos possam utilizá-las, apresentá-las de diferentes formas, em diferentes lugares e contextos e elas possam voltar para você de maneiras, muitas vezes, surpreendentes. Essa é a graça!

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Toda comunidade precisa ter uma associação?

Com esse título, o primeiro capítulo do livro Associação é para fazer juntos abriu a reunião com moradores das comunidades Ilha da Fazenda e São Francisco, na Volta Grande do Xingu, e as três oficinas sobre associativismo nas aldeias da Terra Indígena Kuruaya, nas margens do Rio Iriri, no interior no Pará, nos dias 24 e 27 a 31 de julho.

Apenas uma das aldeias Kuruaya tem uma associação formalizada há mais de 10 anos, segundo relataram os participantes da oficina. Outra teve o estatuto elaborado há dois anos, mas não foi registrado. Essas aldeias e as demais demonstraram interesse em conhecer mais o que é uma associação, como funciona e como esse tipo de organização poderia ser adequada para resolver seus problemas.

Após a leitura do texto, perguntei como era a organização da comunidade. Em uma delas, disseram que não havia organização nenhuma, querendo dizer que não tinham nenhuma organização formal. Conversando sobre a escolha de lideranças, as atividades que faziam juntos, como compartilhavam o território, foi ficando claro que todas tinham uma forma própria de se organizar, mesmo que em alguns casos essa organização fosse bastante frágil:

“A nossa organização é só entre nós. Fazemos a roça juntos, conversamos algumas coisas como o trabalho, os recursos que precisamos, fazemos reivindicações e outras coisas de interesse como atividades produtivas, educação, saúde, transporte, moradia, energia, definição fundiária.”

“Nós não somos uma comunidade porque não trabalhamos juntos, não pensamos juntos. É só o nome. Não temos nada juntos. É cada um por si.”


Uma comunidade não é definida pelo espaço geográfico, mas pelas relações existentes. Pessoas que moram no mesmo lugar nem sempre formam uma comunidade. Pessoas que moram em lugares diferentes podem formar uma comunidade se compartilharem dos mesmos objetivos e atuarem coletivamente para atingi-los.

Conversamos sobre a organização comunitária, cada uma com as suas características, que surge e se desenvolve junto com a própria comunidade; que as relações construídas por afinidades de objetivos e trabalho coletivo é fundamental para melhorar suas condições de vida; como ela é capaz de resolver muitas de suas necessidades com os próprios meios e como pode aproveitar as oportunidades de parcerias mesmo sem uma organização formal.

Toda comunidade precisa ter uma associação? Não. Apenas aquelas que, no desenvolvimento de suas ações coletivas, sentirem a necessidade de uma organização formal para representá-las legalmente, assinar contratos, movimentar contas bancárias, emitir notas fiscais. Por isso, antes de decidir pela fundação de uma associação, a comunidade deve se perguntar: o que queremos fazer que não conseguimos se não tivermos uma associação?


Uma associação tem obrigações, despesas e não devemos “adquirir uma ferramenta” se ela não tiver utilidade para nós.

Falamos também da associação como ferramenta de organização coletiva. Foi ressaltado que a organização comunitária é a base para o funcionamento da associação; que os diretores  devem ter ao menos habilidade para desempenhar suas funções, devem ser mobilizadores e articuladores das potencialidades dos associados; que o Conselho Fiscal deve ser atuante no seu papel de controle social do uso dos recursos e que a Assembleia Geral deve reunir de fato os associados para pensarem juntos nas estratégias de ação e para avaliarem os resultados alcançados.

Ao final da reunião e cada uma das oficinas, a conclusão foi de que “sem comunidade não tem associação.” Concluíram também que precisam conversar mais e fortalecer a sua organização antes de decidirem pela criação de uma associação. A aldeia que já possui a sua, que está inoperante há anos, decidiu conversar sobre o aprimoramento de seu funcionamento.


Se as associações devem ser devolvidas aos movimentos sociais, fico contente em pensar que há comunidades e lideranças dispostas a isso.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Consultorias devem estar inseridas na estratégia de ação da organização

Tenho trabalhado principalmente como consultor nos últimos sete anos, observado algumas situações e feito reflexões que quero compartilhar com vocês, em especial os colegas de profissão e os dirigentes e coordenadores de programas de organizações da sociedade civil.

Consultores são especialistas em determinadas áreas a quem as organizações recorrem em ocasiões em que não têm profissionais da área em sua equipe. Seu trabalho é, por vezes, pontual e em outras periódico. Por ser um especialista em sua área é comum o consultor ser “revestido de uma aura” de quem vai resolver todos os problemas. É claro que ele acumula conhecimentos e experiências capazes de analisar a situação e propor alternativas, mas sua “passagem” é insuficiente para resolver o que quer que seja se não houver disposição e pessoas com qualificação minimamente suficientes para efetivar as suas orientações e dar continuidade ao que começou. Daí a minha pergunta no título.

As consultorias só surtirão algum efeito se estiverem inseridas na estratégia de ação da organização e se ela tiver pessoas dispostas e qualificadas para dar continuidade ao que foi iniciado. A vontade e efetividade de ações por parte dos dirigentes e da equipe são fundamentais para o sucesso do trabalho. Acredito que a organização que “apostar todas as suas fichas” apenas no consultor, será frustrada em suas expectativas. Acredito também que o consultor que ceder à vaidade de assumir esse papel que, muitas vezes, lhe é atribuído, “estará vendendo o que não tem para entregar”.

Fui contratado há alguns anos para acompanhar a execução financeira de alguns projetos em comunidades, fazer um diagnóstico e propor melhorias para um programa de financiamento. Fiz as visitas, executei o trabalho planejado junto com os dirigentes das associações locais, o diagnóstico com base nos documentos disponíveis, nas conversas e atividades realizadas e apresentei algumas propostas para tornar o programa mais eficiente e eficaz: aprimorar a capacitação dos gestores das organizações comunitárias para a gestão dos projetos, monitorar a execução e aprimorar o sistema de controle a partir das prestações de contas apresentadas. Avaliaram que não havia possibilidade de aprimorar os controles por falta de equipe e também não seria possível aprimorar a capacitação e o monitoramento porque implicaria aumento de custos e de trabalho para uma equipe já reduzida diante da demanda.

Em outra ocasião me convidaram para facilitar o processo de planejamento estratégico de uma organização que, na verdade, estava preocupada porque seu único financiador sinalizou com a interrupção do apoio financeiro e queriam encontrar alternativas de financiamento. Propus primeiro fazer um diagnóstico organizacional para que a organização se conhecesse melhor e enxergasse não só a necessidade de recursos financeiros. Durante o processo um dos integrantes da equipe me disse que tinha uma alternativa de trabalho e estava só esperando a minha resposta se a organização tinha condições de continuar atuando ou se deveria ser extinta pelos associados. Respondi a ele que não estava ali para “decretar a morte” da organização. Isso seria uma decisão deles, se avaliassem que era a melhor alternativa. No entanto, se dissessem que tinha alguma chance e que estavam dispostos a encontrar formas de mantê-la eu apoiaria a decisão tomada, por exemplo, facilitando com eles em outro momento um processo de planejamento estratégico. Um consultor subsidia a direção e a equipe, mas não toma decisão por eles.

Já trabalhei para uma organização com consultorias periódicas para as associações comunitárias que ela apoiava. Discutia as demandas com a equipe local e planejava oficinas ou consultorias para capacitação em serviço. Os técnicos de campo eram encarregados das atividades cotidianas de desenvolvimento daquelas organizações, mas não acompanhavam de perto as atividades que eu realizava. Por várias vezes chamei para participarem. Ficavam para uma conversa ou atividade pontual e depois iam cuidar das outras tantas demandas que tinham. O resultado foi a descontinuidade das ações e o pouco aproveitamento das orientações e sugestões dadas. Muitas vezes acabavam dando orientações divergentes.

Isso, aliás, me lembra de outra situação em que me reuni com um grupo de produtores e conversamos sobre a gestão do capital de giro, a organização da produção, a venda e os controles da entrega dos insumos pela associação, a entrega de produtos, a venda e o pagamento aos produtores, além do controle financeiro das atividades do grupo. A atividade demorou algum tempo para se efetivar e, depois de um ano que tinha iniciado, me chamaram para uma nova consultoria. Deparei-me com uma situação em que a entrega dos insumos não foi feita conforme o combinado, de forma que o capital de giro perdeu-se e os controles não estavam sendo feitos adequadamente. As pessoas da equipe que ficaram encarregadas da continuidade das ações não eram preparadas e não estiveram atentas suficientemente ao que estava sendo combinado e orientado na oficina. Questionei porque não me procuraram antes ou porque não tiraram as dúvidas por e-mail ou telefone antes de fazerem “da forma que encontraram no momento”. Durante essa última consultoria, recente, avaliamos a execução feita até ali, identificamos as fragilidades, aprimoramos os controles e pessoas do grupo foram treinadas para utiliza-los. Insisti para que fosse procurado em caso de qualquer dúvida.

 Algumas consultorias que prestei em oficinas ou capacitações em serviço foram bem sucedidas em si. Quer dizer, as pessoas elogiaram, pediram que eu voltasse para continuar, mas não houve impacto no dia-a-dia da organização. Me lembram o ditado: “Se não sabemos onde queremos chegar, qualquer lugar serve.”

Entender uma consultoria como a solução para todos os problemas não é realista. Costumo falar brincando para quem respira aliviado quando eu chego, achando que todos os problemas serão resolvidos, que consultor não resolve nada, não faz nada, consultor dá consulta, sugere alternativas. Qualquer solução ou avanço no trabalho será conseguido por eles. Em uma organização em que trabalhei, que tinha um programa de capacitação de organizações comunitárias e tinha sua atuação baseada na apresentação de demandas, muitas vezes quando a situação já estava crítica, disse em uma reunião de avaliação e planejamento que “não queremos ser pronto socorro, mas médicos de saúde da família. Não queremos apenas eliminar problemas, mas cuidar para que as associações sejam saudáveis e tenham o mínimo de problemas possível.”

Em primeiro lugar, toda organização precisa de um planejamento, bem pensado e pactuado com todos os atores. É fundamental também que tenha os recursos necessários e uma equipe preparada para realizar as atividades e atingir seus objetivos. Consultores são chamados para atividades eventuais dentro do contexto da estratégia organizacional para os quais a equipe não é suficiente e a organização avalia que não é necessário ter um especialista permanente, o que pode ser facilitar processos de planejamento, para avaliar ou aprimorar o trabalho que vem sendo realizado, para agregar novos conhecimentos e técnicas através de cursos ou oficinas.


O trabalho de um consultor não é permanente e não é, necessariamente, contínuo, mas deve com certeza estar inserido no estratégia da organização. Ele deve conhecer o plano a organização, ter claro qual é a necessidade que motiva a sua contratação, dizer claramente qual é a contribuição que pode dar e trabalhar em harmonia com a equipe. Eu costumo também disponibilizar contatos por telefone, e-mail e redes sociais para tirar dúvidas que venham a ocorrer.