Cidadania também é para fazer juntos!

CIDADANIA TAMBÉM É PARA FAZER JUNTOS!

Associação é para fazer juntos. O título desta publicação, lançada pelo IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, no início de dezembro de 2011, já exprime o que será tratado em seus capítulos: que a criação de uma associação deve ser resultado de um processo coletivo e sua atuação deve ser marcada também pela participação efetiva de seus associados.


É o resultado de 10 anos de trabalho com organizações comunitárias e regionais indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, agricultores familiares e outros, aprofundando e atualizando o que já foi publicado anteriormente em Gestão de associações no dia-a-dia.

Este blog nasceu como um espaço para troca de conhecimentos e experiências de quem trabalha para o desenvolvimento de organizações comunitárias e outras.

A partir de 2018 passou a ser também um espaço para troca de ideias e experiências de fortalecimento da cidadania exercida no dia-a-dia, partilhando conhecimento e reflexões, produzindo e disseminando informações, participando de debates, dando sugestões, fazendo denúncias, estimulando a participação de mais pessoas na gestão das cidades onde vivem.

Quem se dispuser a publicar aqui suas reflexões e experiências pode enviar para jose.strabeli@gmail.com. Todas as postagens dos materiais enviados serão identificadas com o crédito de seus autores.

É estimulada a reprodução, publicação e uso dos materiais aqui publicados, desde que não seja para fins comerciais, bastando a citação da fonte.

José Strabeli




quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Elaboração participativa de projetos ou as suas "ruínas"

Tenho sugerido, e cada vez mais financiadores têm exigido, que os projetos tenham a participação da comunidade, desde a identificação do problema até a avaliação, passando pela definição da estratégia para superá-lo, a elaboração, execução, gestão e avaliação. Até mesmo a observação tem mostrado que projetos impostos ou oferecidos “de paraquedas” são mal executados e geridos e não dão resultados satisfatórios.

Em seu artigo “A cultura Ramkokamekrá de apoio aos índios”, publicado no livro Povos indígenas: projetos e desenvolvimento, pela Contra Capa Livraria, Andreas Friedrich Kowalski, que trabalhou com esse povo, também conhecido como Canela, relata que “outra constatação surpreendente foram ruínas de vários projetos que, pelas informações dos próprios índios, andavam muito bem enquanto eram implantados e cuidados por técnicos não indígenas. A partir do momento em que ficavam sob a responsabilidade do grupo, eram extintos rapidamente, sem que alguém pensasse em como obter efeitos sustentáveis. Assim, já sumiram, por exemplo, roças com grande diversidade de frutos, um rebanho de gado bovino, uma criação de peixes, um sistema de canalização para distribuir água na aldeia e um laboratório odontológico. Hoje, há na ladeia um moinho de arroz fechado, ainda que a lavoura de arroz tenha crescido e, em Barra do Corda, ao lado da casa dos estudantes, uma padaria doada por uma igreja, mas logo depois fechada pelos índios.”

Conta também que “em conversas com colaboradores indígenas sobre esses casos e sobre como conseguir efeitos sustentáveis, utilizando os desdobramentos dos projetos para manter a autossuficiência e autonomia econômica do grupo, muitos de meus interlocutores me surpreenderam outra vez com a opinião de que a ideia de continuação sustentável, sem dúvida, é importante, porém pertence à cultura dos ‘brancos’ e, portanto é tarefa de assistentes técnicos não indígenas. Assim, tornou-se claro que, na opinião desses índios, os efeitos sustentáveis são uma responsabilidade dos apoiadores, de acordo com o lema: ‘Como és tu quem sabe, é necessário que fiques e trabalhes com nós, os Canela’. A ideia em jogo era que os apoiadores trabalhassem para os Canela ou pagassem salários para que estes continuassem com as ações do projeto após a sua execução.”

Na conclusão afirma que “na área de apoio aos índios, os representantes do grupo, ao menos os que conheço, participam pouco no planejamento dos projetos e contam muito com os patrões não indígenas.

Desde que li esse artigo pela primeira vez fiquei pensando que, muito mais do que fruto da cultura indígena, que vale também para as diferentes comunidades tradicionais, o pouco sucesso e sustentabilidade dos projetos estão relacionados à forma de trabalhar das organizações governamentais e não governamentais e seus técnicos.

Fábio Vaz Ribeiro de Almeida, tratando de “O mercado de projetos e a busca pelo protagonismo indígena”, no Guia para a formação em gestão de projetos indígenas, do Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas – PDPI, publicado pela Paralelo 15, identifica que “há entre os projetos apoiados pelo PDPI, inúmeros que contam com a parceria de ONGs indigenistas com atuação local. Raramente são elas as proponentes dos projetos, mas a sua importância no arranjo institucional responsável pela gestão do projeto é muitas vezes central. Apesar da diferença nas formas de trabalhar, a busca da autonomia aparece de forma unânime nos discursos das ONGs, em seus textos, nos projetos elaborados e nas conversas com técnicos a ela ligados. Este discurso está afinado com aquela que as agências financiadoras pretendem ouvir. É curioso reparar, no entanto, como é difícil que apareçam de forma não hegemônica (...). Por outro lado, o principal problema associado ao papel das ONGs na construção da autonomia indígena está na dificuldade de superar alguns vícios da relação de seus parceiros com ‘o mundo dos brancos’, reificando algumas vezes o paternalismo e até mesmo o clientelismo que tradicionalmente orientaram sua relação com este. Jaime Siqueira, em sua tese de doutorado, mostra claramente como os próprios índios acionam essas relações tradicionais em proveito próprio, às vezes até manipulando com o seu ‘desconhecimento das coisas do mundo dos projetos’. Mas o fato é que, muitas vezes, os técnicos ou dirigentes de ONGs, assim como fazem também técnicos de governo e lideranças indígenas, se furtam a esclarecer o que seria necessário para uma boa gestão do projeto, evitando entrar em choque com seus aliados. Essa postura, ao invés de contribuir para a almejada autonomia, caminha na sua contramão.”

Aqueles que se dedicam de fato ao desenvolvimento comunitário e à autonomia dos povos indígenas e comunidades tradicionais podem ter nos projetos uma contribuição para isso. Na conclusão de seu artigo, Andreas Kowalski, reflete também que: “ Mas se estou certo e se os Ramkokamekrá realmente protegem a sua cultura da maneira como esbocei, o que pode ser feito é aumentar a parte do conselho, quer dizer, da intermediação nos futuros projetos, sempre que for possível e houver condições.”

Com um dos povos indígenas da Amazônia brasileira que tenho trabalhado há quase um ano e que, inclusive, orientei a fundação de sua associação em março, facilitei em abril uma oficina sobre diagnóstico e planejamento participativos. Ficaram de fazer nas aldeias, como preparação para a oficina seguinte, de elaboração de projetos, mas não o fizeram. Em julho, definiram entre eles um possível projeto para geração de renda. Em agosto, em uma assessoria técnica avançamos um pouco mais na elaboração e eles ficaram de conversar nas 5 aldeias que fazem parte da associação quais seriam a melhores atividades. Fizeram essas conversas e, neste mês de outubro, nos reunimos novamente para finalizar o projeto e responder a um dos editais abertos.

Fiquei surpreendido com a participação de mais de 60 pessoas em uma atividade programada para a diretoria da associação e algumas lideranças. Apresentei e expliquei o edital, com o auxílio de um projetor multimídia. Orientei a elaboração do orçamento para a produção e comercialização de artesanato e castanha, como haviam decidido, para verificarmos se estava dentro dos limites de recursos definidos pelo financiador. Como só seria possível uma das atividades, decidiram pelo artesanato. Toda essa conversa foi feita em português e traduzida para a língua indígena para que aqueles que não compreendiam bem o português pudessem também participar. Como já havia verificado em outras atividade que eles tinham dificuldade para escrever, me propus a fazer isso, desde que as ideias partissem deles. A elaboração do projeto foi sendo acompanhada por todos, já que estava sendo feita projetada com data show. Propostas e decisões também foram feitas na língua indígena e traduzidas para mim, para que fossem incorporadas ao projeto. Como o envio do projeto deve ser feito online, os diretores da associação ficaram de fazer isso. Caso tenham dificuldades com a conexão na aldeia, me propus a enviar caso precisem.


Ao final reconheceram o projeto como deles. Tinham claro que uma organização internacional tinha interesse em investir na melhoria da sua geração de renda e qualidade de vida, mas que financiaria apenas aquilo que eles não tinham condições de conseguir por conta própria. Toda a mão de obra para a coleta de materiais na mata, gestão do projeto e da comercialização será voluntária. A sustentabilidade financeira da atividade após o final do financiamento será viabilizada pagando aos artesãos o valor da mão de obra e considerando o investimento em materiais e equipamentos como capital de giro, que retornará para a associação para iniciar um novo ciclo de produção e comercialização. Tinham claro que eu apenas ajudei tecnicamente a elaborar o projeto, mas ele foi feito de acordo com a decisão deles. Serão os responsáveis pela gestão do projeto e da atividade produtiva, inclusive porque a minha assessoria é temporária e eles devem “caminhar com as próprias pernas”. Lembraram que eu havia dito que eles não são "coitadinhos que precisam de ajuda, mas são um povo com grande potencial e que precisa de investimentos." Elegeram uma coordenadora do projeto, que dividirá com a coordenação da associação a execução e a gestão. Sabem também que não têm garantia que serão financiados, porque concorrerão com muitos projetos do Brasil a fora e a sua proposta precisa ser melhor do que muitas outras e talvez tenham que tentar várias outras vezes. Mas estão torcendo muito para que o seu projeto seja aprovado e eu também, porque é uma proposta muito boa e, se aprovada, aposto que não terá “ruínas”.

2 comentários:

  1. Que trabalho maravilhoso. Obrigada por me ajudar a conhecer tanta coisa.

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