Cidadania também é para fazer juntos!

CIDADANIA TAMBÉM É PARA FAZER JUNTOS!

Associação é para fazer juntos. O título desta publicação, lançada pelo IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil, no início de dezembro de 2011, já exprime o que será tratado em seus capítulos: que a criação de uma associação deve ser resultado de um processo coletivo e sua atuação deve ser marcada também pela participação efetiva de seus associados.


É o resultado de 10 anos de trabalho com organizações comunitárias e regionais indígenas, quilombolas, de ribeirinhos, agricultores familiares e outros, aprofundando e atualizando o que já foi publicado anteriormente em Gestão de associações no dia-a-dia.

Este blog nasceu como um espaço para troca de conhecimentos e experiências de quem trabalha para o desenvolvimento de organizações comunitárias e outras.

A partir de 2018 passou a ser também um espaço para troca de ideias e experiências de fortalecimento da cidadania exercida no dia-a-dia, partilhando conhecimento e reflexões, produzindo e disseminando informações, participando de debates, dando sugestões, fazendo denúncias, estimulando a participação de mais pessoas na gestão das cidades onde vivem.

Quem se dispuser a publicar aqui suas reflexões e experiências pode enviar para jose.strabeli@gmail.com. Todas as postagens dos materiais enviados serão identificadas com o crédito de seus autores.

É estimulada a reprodução, publicação e uso dos materiais aqui publicados, desde que não seja para fins comerciais, bastando a citação da fonte.

José Strabeli




sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Associação é a forma mais adequada para a organização de povos e comunidades tradicionais?

Desde que comecei a trabalhar com o desenvolvimento de organizações comunitárias e regionais de povos e comunidades tradicionais, há 15 anos, escuto de lideranças comunitárias e técnicos de organizações privadas e governamentais que as associações são burocráticas demais para que indígenas, quilombolas, agricultores familiares, extrativistas, pescadores e outros possam lidar. Principalmente indígenas e quem trabalha com eles argumentam que associação é muito distante de sua cultura e que eles têm dificuldades para entender como funcionam; cuidar de processos de gestão de recursos que não combinam com as suas formas tradicionais de lidar com o dinheiro e outros bens e que, ter um presidente, que pode tomar decisões e assinar documentos sozinho dá a elas um caráter muito centralizador, principalmente para que tem tradicionalmente processos mais horizontais de decisão.

Dezenas de milhares de associações comunitárias, regionais e étnicas foram fundadas no Brasil, principalmente a partir das décadas de 1980 e 1990. A motivação principal para a maior parte delas é acessar recursos de projetos. Muitas também foram motivadas pela necessidade de se organizarem e terem representatividade, tanto na sociedade civil quanto diante do governo, para ter apoio e lutar por seus direitos e fazer suas reivindicações.

No entanto, a grande maioria delas nunca acessou recursos de projetos. Outras conseguiram o primeiro financiamento, que motivou a sua fundação e nunca mais. Outras conseguem pequenos financiamentos pontuais. Falta capacitação técnica e meios para acessar editais, elaborar os projetos e negociar sua contratação, além de haver muito mais associações apresentando propostas do que recursos para financiá-las. Uma importante fundação avisa já em seu site que apenas por volta de 1% das propostas apresentadas conseguem financiamento. Outra recebeu em 2015 mais de 1.500 projetos e só tinha recursos para financiar por volta de 50. E assim vai.

Não consigo entender porque seria necessário um povo ou comunidade ter uma organização formal para ter representatividade política. Não tenho dúvidas que os órgãos governamentais e, principalmente as organizações privadas, deveriam reconhecer as inúmeras formas tradicionais de organização neste país pluricultural e pluriétnico. Algumas iniciativas, na contramão desse entendimento estreito, têm se mostrado experiências muito interessantes, como o Parlamento Suruí e o Conselho de Caciques do Oiapoque, já tratados neste blog. Eles são organizações informais, com um Regimento Interno elaborado de forma participativa e com grande legitimidade junto àqueles que representam e àqueles com quem negociam.

Resta ainda a questão do acesso a recursos que, mesmo cada vez menos disponíveis, dada a disponibilidade decrescente, principalmente por parte das agências de cooperação internacional e o aumento do número de associações solicitantes, ainda têm beneficiado algumas associações. Estas, que podem ser consideradas privilegiadas, contam com organizações da sociedade civil que as “assessoram” para a elaboração de projetos, gestão dos recursos, organização das atividades e elaboração de relatórios financeiros e de atividades. Ou fazem isso completamente ou redigem a partir das ideias e informações das lideranças, dada a dificuldade que as mesmas têm para fazer sozinhas por causa do pouco conhecimento técnico agravado pela pouca escolaridade ou de má qualidade, o que lamentavelmente é muito comum no Brasil. Tanto as lideranças como os técnicos são unânimes em afirmar que não seria possível cumprir esses compromissos sem esse “apoio”. Os financiadores também reconhecem e compreendem isso.

Um grande esforço em termos de pessoal e recursos tem sido dispendido na busca de capacitação dos administradores dessas associações para a gestão das mesmas, através de cursos, oficinas, consultorias e publicações. Mesmo assim, até associações mais estruturadas e com 20 ou 30 anos de história, caem facilmente na inadimplência com financiadores e órgãos governamentais sem a ação dessas organizações.

O foco de ação de quase ou todas essas associações é a reinvindicação de políticas públicas, controle social das mesmas e conquista de direitos assegurados por lei, ou seja, uma atuação política. Algumas se dedicam também a atividades econômicas sustentáveis, em geral com escala menor do que o necessário para a sua sustentabilidade financeira e, também nesses casos, dependentes de assessoria técnica e/ou para gestão.

Há também o problema da rotatividade dos dirigentes e funcionários, no caso daquelas que conseguem recursos para ter funcionários. Trocas de diretoria, muitas vezes por pessoas sem nenhuma experiência administrativa, levam a um novo processo de capacitação ou a uma crise institucional.

Penso que, se mesmo depois de duas ou três décadas de tentativas, sem conseguir progressos significativos e duradouros, essa situação permanece, não está na hora de pensar novas formas de organização para os povos e comunidades tradicionais que atendam a seus objetivos e também das organizações que as apoiam e dos financiadores interessados em sua proteção e bem-estar?

Por exemplo, se as organizações que apoiam essas associações comunitárias, na verdade protagonizam a quase totalidade dos processos, porque não voltam a assumir a captação e gestão dos recursos e a assistência técnica necessária como faziam antes de se disseminar a ideia de que os povos e comunidades tradicionais tinham que ser autônomos e protagonistas, com suas próprias associações, projetos e gestão dos mesmos? Ora, e isso tem acontecido, já que a presença ativa das organizações que, inclusive estimularam e orientaram a sua fundação, é permanentemente necessária? Se voltassem a assumir esse papel, as lideranças comunitárias ficariam livres desse ônus gerencial e disponíveis para as articulações políticas e reivindicações de seus direitos, que é de fato o que pretendem fazer.

Acho até engraçado e, ao mesmo tempo trágico, quando ouço de dirigentes e técnicos de ONGs, que os índios ou outros, precisam ter seus próprios administradores, técnicos e até motoristas, para serem autônomos, além de pessoas que demonstram preocupação quando uma associação indígena contrata um branco para a gestão ou processos específicos de administração. Alguém questiona se uma ONG “de branco” tem funcionários indígenas, asiáticos ou negros? Alguém questiona a autonomia de um empresário por causa da etnia de seus diretores, gerentes ou funcionários? Alguém é capaz de fazer a manutenção de sua casa, de seu carro, cuidar da própria saúde sozinho ou apenas com a colaboração dos membros de sua família? E porque não se questiona a autonomia e protagonismo de quem contrata pessoas para fazer aquilo que não sabe fazer?

Vejo que a autonomia e protagonismo não está em saber fazer tudo o que se precisa, mas em ter em suas mãos o poder de decisão sobre o que é preciso fazer, quando, de que forma e por quem deverá ser feito.

20 ou 30 anos é bastante tempo e, se as organizações comunitárias e regionais de povos e comunidades tradicionais, durante esse tempo, se desenvolveram muito menos que as organizações que as apoiam, para mim fica claro que associação formal não tem se mostrado uma forma adequada de organização.


Não vejo que o paradigma de que é preciso ter uma associação para se organizar continua válido. É preciso “pensar fora da casinha” e criar novos arranjos institucionais entre os atores para atingir os resultados esperados.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Não existem milagres para facilitar o desenvolvimento comunitário e de suas organizações

É preciso e está mais do que na hora de consultores, técnicos, suas organizações públicas e privadas, além de financiadores se convencerem definitivamente disso.

Durante uma entrevista rápida e informal a uma pessoa a quem fui entregar o meu currículo, por indicação de uma amiga comum, foi comentado: “Ela me disse que você faz até chover.” Achei isso lisonjeiro e um tanto engraçado. Respondi que a nossa amiga era muito generosa comigo. Eu não faço milagres nem mágicas. Apenas me dedico ao desenvolvimento comunitário e de suas organizações, porque gosto muito desse trabalho, e procuro fazer o melhor consigo.

Ainda hoje é frequentemente vendida a ideia para as comunidades de que se fundarem uma associação receberão muito dinheiro de projetos. Já foi tratado em postagens anteriores neste blog que “A ‘corrida do ouro’ se mostrou enganosa para a maioria das associações que foram criadas para isso. Muitas delas nunca conseguiram ter um projeto aprovado e outras tantas tiveram um ou dois e depois não mais. Ao mesmo tempo, sem condições de pagar um contador, com pouca ou nenhuma habilidade para a gestão financeira e administrativa e sem terem sido preparadas para isso pelos ‘seus criadores’, as associações ficam inoperantes e na inadimplência. Isso sem falar daquelas que, sem o devido preparo, assumiram projetos de grande porte, não executaram corretamente as atividades e o orçamento e, impossibilitadas de prestar contas ou tendo a mesma rejeitada pelo financiador, foram deixadas de lado ou tiveram seus dirigentes responsabilizados judicialmente.”

Milagres e mágicas também estão no imaginário de muitos técnicos: A ideia da associação como panaceia cria expectativas que vão muito além de suas possibilidades. É como se uma associação tivesse vida própria e resolvesse por si só os problemas sem depender daqueles que fazem parte dela. Uma das motivações que já ouvi é que ‘a comunidade é desorganizada. Com a associação vai se organizar melhor’”. Ora, a organização comunitária é a base para a organização da associação. Se a comunidade não está bem organizada é preciso que seja feito um trabalho de fortalecimento comunitário para que se organize melhor. Só depois disso é possível pensar em fundar uma associação, se houver a necessidade de uma organização formal para atingir os objetivos a que a comunidade se propõe. Caso contrário, as fragilidades da organização comunitária se refletirão também na associação.

Já ouvi também que “há conflitos e disputa de liderança. Uma associação ajudará a resolver isso”. Sendo uma organização da comunidade, integrada e dirigida pelas mesmas pessoas, os conflitos e disputas de poder irão para a associação também. Poderão até mesmo ficar mais acirrados, uma vez que seus dirigentes terão um 'poder legal', conferido pela organização formal. Os conflitos poderão também crescer na proporção da disponibilidade de recursos, que levam à distribuição de benefícios, além da contratação de pessoas com salários ou ajuda de custo.

“Como técnico trabalhando com aquela comunidade sou muito demandado a resolver problemas burocráticos ou políticos dela. São muito dependentes. Com uma associação terão mais autonomia.” Respondi que era um grande engano. Autonomia se conquista no dia a dia. Os técnicos têm o grande papel de facilitar esse processo. Ir fazendo junto e cada vez mais ceder espaço até que as capacidades necessárias sejam desenvolvidas e as pessoas consigam fazer as coisas sozinhas. Esse trabalho educativo jamais será feito “magicamente ou milagrosamente” pela simples criação de uma organização formal. “O que vai acontecer é que você vai arrumar mais demandas, para resolver as questões burocráticas e outras da associação.”

Recentemente recebi a seguinte mensagem: “Olá, estamos criando uma associação em minha comunidade e seu blog vem sendo de bastante ajuda para a nossa discussão. Este ponto especificamente é um dos mais problemáticos, tendo em vista que as organizações anteriores existentes por aqui fracassaram pelo caráter centralizador dos presidentes e pela cultura dos associados de que o presidente deve arcar com todas as obrigações da entidade.
Por essa razão, estamos propondo um modelo de administração horizontal, sem a figura do presidente (um Conselho Executivo com 11 membros). No entanto, embora não haja um impedimento legal para esse modelo, encontramos algumas dificuldades práticas, que vão das dúvidas em relação à representação institucional da entidade até à resistência do próprio cartório em realizar o registro de um estatuto que, ao invés de ser assinado por um presidente, é assinado por "Membros do Conselho Executivo". Enfim, em face dessas dificuldades, que soluções poderíamos adotar?”

Respondi que “Uma associação precisa ter um representante legal, necessariamente UMA pessoa física. Nas associações que adotam um Conselho Diretor ou Conselho Executivo, os membros do conselho elege entre si uma pessoa que terá o título de presidente do conselho ou outro que se queira dar e este assinará os documentos legais da associação, tanto diante dos órgãos governamentais como contratos, convênios, etc. Não tem como escapar disso.

“É importante termos claro que uma associação só será horizontal quando os associados participarem efetivamente de todas as decisões e ações, desde o diagnóstico até a avaliação, passando pelo planejamento, execução, monitoramento, entre outras.

“Isso só se resolve com muita conversa e experimentação no dia a dia da associação. Não tem como resolver isso burocraticamente.”

Fiquei muito esperançoso em saber há algum tempo que nem todas as pessoas que trabalham com comunidades abandonaram a educação popular, idealizada por Paulo Freire há décadas, como algo do passado.

Segundo Cristhiane da Graça Amâncio em seu artigo “Educação Popular e Intervenção Comunitária: Contribuições para a reflexão sobre empoderamento”, quando falamos de participação social, valorização do conhecimento popular e alternativas pedagógicas que promovam a emancipação de sujeitos críticos, estamos tratando de educação popular: “O processo educativo com o grupo ou comunidade deverá ser construído em conjunto por todos os atores envolvidos partindo de sua realidade, como se relacionam com ela, suas necessidades, suas capacidades, porque não existe metodologias de desenvolvimento local e sim metodologias que possam apoiar a tomada de decisão, de reflexão e fortalecer os laços comunitários. Na perspectiva da educação popular, todo interventor assume um papel de fato educativo onde os sujeitos populares não são objetos de sua intervenção. Eles são enxergados como agentes de mudança tal como esse interventor.

“É preciso identificar grupos com interesses comuns, orientar a comunidade na identificação dos problemas e promover a organização inicial do grupo, que por conseguinte tem um papel totalmente ativo, diagnosticando e estabelecendo meios para solucionar os problemas bem como suas causas.”

O papel do mediador ou do educador, de acordo com Paulo Freire, será o de “dar força e jeito para que esses grupos populares transformem de fato o dia de amanhã”, tem o papel de instigador com uma contribuição fundamental a dar, estimulando a autoconfiança do grupo e dando-lhe subsídios para adquirir autonomia, conhecimento e consequentemente poder de contraposição. Círculos de reflexão vão propiciar que as pessoas se reúnam e reflitam coletivamente sobre seus problemas e suas histórias individuais permitindo que sejam tomadas decisões coletivas, uma postura coletiva. Devem levar à recuperação da autoestima para romperem com formas antigas de relação de dependência e terem consciência da capacidade que possuem de transformar sua realidade.

Em outra postagem, já disse que “Entendo que as associações têm três dimensões fundamentais:

“1. Comunitária: a associação é uma organização da comunidade, foi fundada porque a comunidade precisava dessa ferramenta para algumas de suas demandas. A associação precisa da organização comunitária para manter sua capacidade de atuação. Conversar com os velhos, descobrir e valorizar talentos, organizar grupos de trabalho, fazer diagnóstico e planejamento, monitorar e avaliar juntos, atingir os objetivos a que se propôs é o que vai manter e fortalecer a razão da sua existência. É na comunidade que está a sua missão.

“2. Política: Fortalecer a articulação e a mobilização da comunidade, lutar por seus direitos, reivindicar e participar do controle social de políticas públicas, fortalecer a sua articulação com organizações similares,
contribuindo para o movimento regional, nacional ou internacional é contribuir para a construção de uma cidadania efetiva.

“3. Gerencial: Exigências legais cumpridas, procedimentos administrativos bem definidos, as boas práticas de gestão incorporadas e as rotinas administrativas e burocráticas fazendo parte do dia a dia da associação. Não deixando acumular e tornando-as rotineiras, essas tarefas exigirão menos tempo e esforço de uma só vez. Se associação é ferramenta de trabalho, é preciso que esteja ‘bem afiada e funcionando bem’ para que possa nos servir para o trabalho que necessitamos fazer.”

Se a dimensão comunitária tem sido bastante esquecida, a gerencial também tem sido muitas vezes negligenciada, apesar da captação de recursos através de projetos ser o foco privilegiado. Durante uma oficina sobre gestão de associações para dirigentes e lideranças comunitárias, ao falar sobre as exigências legais e as boas práticas de gestão, o técnico que trabalhava com eles me perguntou se eu não estava sendo “mais real do que o rei” e eu respondi que não, se não fizesse isso a associação poderia enfrentar sérias dificuldades.

Em outra oficina sobre gestão, para outra associação, que estava esperando a aprovação de um projeto enviado para um órgão governamental, ao tratar da contabilidade e envio de declarações e informações aos órgãos oficiais, me disseram que não tinham um contador contratado, recorreram algumas vezes para o envio da declaração de imposto de renda,  mas estavam devendo algumas e tinham multas para pagar; nunca tinham feito a escrituração fiscal, nem cumprido com as demais obrigações, cadastro na Caixa Econômica Federal acreditavam que nem tinham. Tive que dizer para eles que, se o projeto que haviam enviado com muito esforço e contribuição de várias organizações parceiras fosse aprovado não conseguiriam assinar o contrato porque não teriam nenhuma das Certidões Negativas de Débito para apresentar, conforme eles sabiam que seria exigido. Disse que “era como se abrissem uma nova área para roça, destocassem, limpassem e, na hora de plantar descobrissem que a enxada estava sem cabo, não poderiam plantar e ficariam sem comida pelo próximo ano.” O presidente da associação completou: “E o pior, é que nem dá para tirar um cabo no mato. É preciso ser feito por um marceneiro especializado na cidade.”

Eles saíram tão preocupados depois dessa conversa no final do dia que na manhã seguinte eu pedi desculpas pelas más notícias, mas não poderia deixar de dizer para eles o que precisava ser dito. Um dos dirigentes respondeu que eu não tinha que me desculpar, que foi importante eles saberem a real situação e como resolvê-la. Ficaram de verificar o valor das multas e dos honorários de um contador para solucionar as pendências para buscarem formas de captar os recursos necessários.

Entendo que não dar o devido valor e atenção a qualquer um desses aspectos e o paternalismo que leva muitos técnicos e suas organizações a “passar a mão na cabeça” das comunidades, elogiando tudo o que fazem, mesmo quando deixam de fazer coisas necessárias, não ajuda em nada no desenvolvimento comunitário e de suas organizações, nem no aprendizado e amadurecimento das pessoas em busca de sua autonomia. Pelo contrário, atrasa esse desenvolvimento. É um engano pensar que eles gostam de ser tratados como crianças ou incapazes de fazer melhor.

O desenvolvimento das comunidades, de suas associações e outros tipos de organização não é uma questão de milagre ou de mágica, mas de dedicação, compromisso, pessoas capacitadas e dispostas e estratégias adequadas, além dos recursos necessários. E dá tempo? Se não tiver pressa, dá!

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A associação precisa ter um Regimento Interno?

Essa pergunta já me foi feita muitas vezes, algumas delas logo depois da fundação da associação. Respondo sempre que a associação não precisa ter um Regimento Interno. Não existe nenhuma exigência legal sobre isso.

O Estatuto Social é o instrumento jurídico de constituição da associação. Ele e a Ata de Fundação e Eleição da Diretoria, registrados em cartório, marcam a sua constituição legal. Costumo comparar o Estatuto da associação com a Constituição do país. Ele expressa a vontade dos associados sobre quem faz parte ou pode vir a fazer parte dela, seus objetivos, órgãos de administração e deliberação, constituição e destino do patrimônio, etc. Dessa forma, para a sua elaboração e aprovação em assembleia, deve ser garantida a participação de todos os interessados, para que ele seja o resultado da pactuação e expresse o consenso ou a vontade da maioria dos associados. Durante a existência da associação, será também uma fonte de consultas sempre que houver dúvidas.

No entanto, tenho sugerido que o Estatuto seja “enxuto”, contendo o mínimo exigido pela legislação, uma vez que seu registro em cartório implica em custos financeiros, o que acontece também quando são exigidas cópias do mesmo para alguma atividade da associação, como abertura de conta bancária, assinatura de contratos, etc. Também não considero saudável criar muitas normas no momento em que a fundação da associação está sendo decidida, para que ela não nasça burocrática demais.  O detalhamento deve ser feito no Regimento Interno, cuja vigência exige apenas a aprovação da Assembleia Geral e não costuma ser solicitado em procedimentos burocráticos. É, como diz o próprio nome, um documento interno. Sempre aconselho que ele seja elaborado quando a associação já está funcionando e começam a ter dúvidas de como encaminhar determinados procedimentos ou tomar certas decisões.

Uma das associações com quem tenho trabalhado ultimamente foi fundada há pouco mais de um ano. No decorrer desse período, os coordenadores tiveram dúvidas em vários momentos e me perguntaram como resolver. Algumas delas puderam ser respondidas diretamente consultando o Estatuto. Outras não haviam sido definidas nele. Assim foi surgindo a necessidade de elaboração de um Regimento Interno, que é um detalhamento do que está disposto no Estatuto.

Neste mês nos reunimos para elaborar uma proposta de Regimento Interno. Participaram 28 pessoas entre coordenadores, conselheiros e demais associados. Comecei perguntando quais eram as dúvidas que tiveram neste primeiro ano de funcionamento da associação e que não puderam resolver consultando o Estatuto. Os relatos foram sendo anotados e expostos com um projetor multimídia para que todos pudessem acompanhar em tempo real.

Sobre cada um dos aspectos apontados inicialmente e também para os que foram surgindo durante os dois dias de trabalho, foi discutida a melhor regulamentação. Com alguns regimentos de outras associações com quem já tinha trabalhado, fui dando sugestões de redação que eram aceitas, ajustadas ou rejeitadas. Não podemos esquecer que cada norma ou procedimento ali colocadas deve ser fruto de uma pactuação entre os associados e deve ser condizente com aquela associação específica, com as especificidades daquelas comunidades, tamanho e complexidade de sua estrutura, etc. O Estatuto deve ser sempre consultado durante esse processo porque é ocioso repetir o que já está claro no Estatuto e, regido por ele, o Regimento Interno não pode ser contraditório nem divergente com o que está disposto nele. Depois de elaborado, será ele também fonte de consulta para quando tiverem dúvidas sobre como proceder.

Dessa forma, o Regimento Interno daquela associação foi tomando forma e corpo, tratando do que deve constar no Edital de Convocação das Assembleias Gerais, como deve ser divulgado para os associados, participação de convidados, procedimentos de eleição e tomada de decisões, como fazer a verificação de quórum para a sua instalação; funcionamento do Conselho Fiscal e como deve ser redigido e apresentado o seu parecer sobre as contas da coordenação; renúncia, destituição e substituição de coordenadores e conselheiros; uso do patrimônio; gestão, controle e prestação de constas dos recursos; contabilidade; contratação de funcionários, prestadores de serviços e estagiários e admissão de voluntários.


Ao final, avaliaram que as dúvidas que haviam tido até aquele momento estavam esclarecidas. Outras coisas, como a criação de departamentos ou setores, seriam deixadas para depois, quando estivessem acontecendo. A proposta de regimento será experimentada por alguns meses, até a próxima Assembleia Geral, para verificarem na prática como as suas disposições funcionam. Nesse período, será corrigida e complementada conforme as necessidades, antes de sua aprovação. Também foi lembrado que, assim como o Estatuto, pode ser reformado sempre que necessário, mesmo depois de aprovado pela Assembleia Geral. Se a vida da comunidade e de sua associação é dinâmica, seus documentos constitutivos e normativos também devem ser.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Diagnóstico e Planejamento Participativos: é fazendo que se aprende!

Desde os primeiros cursos e oficinas que facilitei sobre Diagnóstico e Planejamento Participativos para lideranças comunitárias, me deparei com o dilema apresentado por eles ao final: “foi muito bom aprender as metodologias de diagnóstico, como fazer planejamento, os exercícios que fizemos para aprender praticando, mas não nos sentimos preparados para fazer isso na nossa comunidade. Vocês dão assessoria para nós fazermos pelo menos nas primeiras vezes, até nos sentirmos mais seguros?”


Mesmo em cursos modulares de elaboração de projetos, nos quais os participantes deveriam fazer o diagnóstico em suas comunidades após o módulo presencial sobre o assunto para, depois, elaborarem o projeto no módulo seguinte a partir do planejamento feito nas comunidades, o resultado sempre foi muito menor do que o esperado. Isso nos remete a uma reflexão já feita aqui sobre os limites das atividades formativas ou de capacitação para o desenvolvimento de organizações comunitárias.

No ano passado estive à frente de um programa de desenvolvimento de organizações comunitárias que teve como um de seus resultados a fundação da associação. No mês seguinte, iniciando outra atividade, perguntei aos diretores eleitos o que fariam agora que a associação tinha sido fundada. Responderam que não sabiam. Ponderei com eles que não sabiam porque não tinham planejado junto com os associados o que fariam com “aquela ferramenta que tinham adquirido” e, para planejar, é preciso ter claro quais são os principais problemas a serem resolvidos ou melhorias a serem conquistadas.

Este foi o mote para introduzir a oficina sobre diagnóstico e planejamento que realizaríamos naqueles dias, a primeira das três que compunham um Curso de Elaboração de Projetos. Se não identificamos os problemas e necessidades da comunidade e não planejamos o trabalho que deve ser feito através da associação, não sabemos o que fazer e a associação fica paralisada.

Após esclarecer o conceito e a importância do diagnóstico e da necessidade dele ser participativo, foram apresentadas e exercitadas algumas metodologias de Diagnóstico Rápido Participativo e de realização do planejamento, utilizando uma Matriz. Ficaram de fazer essas atividades nas comunidades antes da oficina seguinte, de elaboração de projetos. O resultado não foi diferente daqueles vistos em oficinas anteriores. No máximo, identificaram algumas atividades potenciais de geração de renda, para as quais precisavam de investimentos.

Neste ano, outro programa com as mesmas comunidades, também previa capacitação neste assunto. Optamos pela capacitação em serviço e, ao invés de mais um curso, facilitei o processo de diagnóstico e planejamento nas comunidades.

Anteriormente já havia pedido às lideranças que escolhessem um grupo de mais ou menos 10 pessoas, formado pelos diretores da associação e mais algumas pessoas que avaliavam que poderiam contribuir diretamente com o processo.

Inicialmente fizemos uma leitura dialogada do capítulo 8 do livro Associação é para fazer juntos: Conhecendo e priorizando os problemas. Depois de destacados os aspectos principais e esclarecidas as dúvidas, decidimos que a Chuva de Ideias seria a metodologia mais adequada para iniciar o diagnóstico.

A comunidade foi reunida e, depois de explicado o objetivo, foi feita a Chuva de Ideias. Como os problemas apresentados estavam focados nas necessidades mais importantes e não eram muito numerosos, não foi preciso fazer a priorização. Decidiram que era possível e importante que a associação tratasse do seu conjunto nos próximos 2 anos, período definido para o planejamento, que coincidia com o restante do mandato da primeira diretoria da associação. Foi aproveitada a oportunidade para que os presentes dessem mais informações sobre cada um dos problemas, o que orientaria melhor o uso das demais metodologias.
 
Com este primeiro passo dado, o grupo voltou a se reunir e definiu que, para aprofundar o conhecimento sobre os problemas levantados com a comunidade, o mais adequado seria fazerem Entrevistas Semiestruturadas. Divididos em grupos por problema, de acordo com a afinidade de cada um, elaboraram as perguntas básicas e saíram pela comunidade entrevistando as pessoas, tomando o cuidado de procurar aqueles que tivessem informações relevantes para dar e sob vários pontos de vista, por exemplo, os enfermeiros, os agentes de saúde, pacientes, lideranças sobre o atendimento à saúde.

As entrevistas foram sistematizadas, algumas por mim, dada a dificuldade de alguns para escrever. Outros grupos já entregaram as entrevistas sistematizadas. O grupo avaliou as informações conseguidas e o que mais precisavam saber para conhecerem bem os problemas para poderem planejar adequadamente como superá-los.

Sobre a necessidade de ter ensino médio nas comunidades para os jovens continuarem seus estudos, verificaram que não tinham muitas informações sobre o processo de reivindicação das comunidades, iniciado há mais ou menos 10 anos. Decidiram fazer um Perfil Histórico e, para isso, foram buscar mais informações com um professor que tem acompanhado de perto esse processo. O perfil foi feito em uma faixa de papel, tendo sido importante também para visualizarem que teve um período de alguns anos em que o governo não se pronunciou e a comunidade também não interferiu para agilizar a conquista. Isso foi refletido depois com a comunidade e decidiram que “não podem ficar parados”.

Sobre a rede de distribuição de água, que não atende a todas as casas, fizeram, mesmo que de forma não muito sistemática, uma Caminhada Transversal para verificar quais as casas tinham torneira e quais não tinham para fazer um Mapeamento Participativo. Nele foi verificado que não eram muitas as casas sem acesso à água e a distância destas para as que tinham não era longa, de forma que não seria exigido um investimento significativo para que todas fossem atendidas.

Também foi feito um mapa sobre a invasão de pescadores, identificando os pontos em que foram vistos recentemente turistas das pousadas próximas pescando em área das comunidades.

Sobre outros problemas tratados, avaliaram que as informações eram suficientes e que outras metodologias não ajudariam a melhorar o conhecimento.

A comunidade foi novamente reunida para validar o diagnóstico. Novas informações foram incorporadas, esclarecendo ainda mais as causas e efeitos daqueles problemas.

Concluído e validado o diagnóstico, foi feito o planejamento. Com uma Matriz de Planejamento exposta com um projetor multimídia, foram utilizados como objetivos gerais os objetivos da associação, constantes em seu Estatuto, demonstrando que as ações de fato contribuiriam para atingir os objetivos que definiram ao fundá-la. Os objetivos específicos foram formulados a partir dos problemas apresentados, definindo a situação que desejavam ter no lugar daquela indesejável que estavam vivendo.

A partir dos objetivos, foram sendo definidos com a intervenção constante de quem desejasse, as atividades que seriam realizadas, os resultados que previam alcançar com elas, os recursos necessários para a sua realização, os responsáveis pela sua organização e execução e as organizações privadas e governamentais que poderiam contribuir de alguma forma como parceiros. Foram escolhidos responsáveis de acordo com o conhecimento, experiência e afinidade com cada tema, o que pode levar a uma futura formação de grupos de trabalho, coordenações ou departamentos dentro da associação.


O Plano de Trabalho será apresentado para apreciação dos associados na próxima assembleia.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Programas de desenvolvimento organizacional devem facilitar o empoderamento

Toda vez que me propõem trabalhar em um programa, penso até que ponto ele facilitará o empoderamento daquelas lideranças e comunidades, se as atividades são coerentes com os objetivos propostos e se terá continuidade. Programas de apoio ao desenvolvimento das organizações comunitárias devem facilitar o processo de empoderamento das mesmas.

Em dezembro de 2015 facilitei o encontro para troca de experiências e, de certa forma, avaliação de um programa de desenvolvimento organizacional de associações comunitárias que durou 13 meses, com atividades mensais.

De acordo com o que relataram no início do programa, aquelas comunidades desejavam há anos fundar a sua associação, mas não tiveram antes a oportunidade e orientação necessárias.

Iniciamos pela reflexão, aberta a todas as comunidades envolvidas, da qual participaram por volta de 70 pessoas, sobre o que é uma associação, seu papel como organização comunitária, começamos a definir os objetivos e estrutura, falamos sobre as obrigações legais, custos para a sua manutenção e, sobretudo que, sendo uma organização comunitária, é uma ferramenta que só funcionaria com o trabalho conjunto dos associados. Foi formado um grupo de 20 pessoas para estar à frente do processo de fundação da associação, com a finalidade de mobilizar as comunidades, continuar as reflexões internamente e procurar as informações necessárias.

Para terem maior clareza sobre a gestão de uma associação e os encargos que estariam assumindo, a atividade seguinte foi uma oficina para o grupo de 20 pessoas escolhidas, sobre aspectos legais e gerenciais, como a realização de reuniões e assembleias, elaboração de relatórios e atas e registro dessas últimas; contratação de pessoal; necessidade de ter um contador trabalhando junto; a organização financeira e a necessidade de transparência no uso dos recursos.

Para a fundação da associação, o grupo elaborou com a minha orientação uma proposta de estatuto, discutida inicialmente entre eles e, em seguida, na assembleia quando cada artigo foi lido, traduzido na língua materna, discutido e modificado quando necessário pelos mais de 150 participantes. A associação foi fundada e a coordenação e conselhos eleitos. Com as informações que já tinham colhido previamente, os coordenadores providenciaram as assinaturas na ata de fundação e no estatuto, cópias de documentos pessoais dos eleitos, o dinheiro necessário junto ao financiador do programa e registraram no cartório. Foram acompanhados na contratação do contador para providenciar os cadastros nos órgãos governamentais e fazer a contabilidade de associação.

Foram feitos dois intercâmbios com outras associações indígenas, escolhidas de acordo com as experiências que poderiam trocar que fossem relevantes para o estágio de organização daquela associação. Foi discutido previamente com o grupo que tipo de informações avaliavam ser importantes naquele momento para eles.

Foi realizada também uma oficina sobre políticas públicas voltadas para os povos indígenas, uma vez que participar da criação, reivindicar a implementação e melhoria de políticas públicas é uma importante atribuição da associação.

Foi dada uma oficina de elaboração de projetos, em três módulos, tratando de diagnóstico e planejamento, elaboração e gestão de projetos. Fizeram reuniões nas aldeias para definirem o objetivo dos projetos a serem elaborados e encaminhados para financiamento. Fruto dessa mobilização e da clareza de que Associação é para fazer juntos, mais de 50 pessoas participaram da elaboração do projeto. Foi enviado pelos coordenadores para dois financiadores e estão concorrendo ao financiamento.

Fizeram outras reuniões nas aldeias para falar da inscrição de novos associados, do uso do patrimônio da associação e da contribuição financeira dos associados. Realizaram uma assembleia para esclarecer melhor o estatuto e aprovar a contribuição mensal para a manutenção da associação.

No último encontro, em dezembro, lembraram os temas que haviam sido tratados nas oficinas e o que aprenderam sobre cada um deles, as atividades realizadas e os resultados alcançados. Refletiram sobre o conceito de empoderamento: uma ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma realidade em que se encontra. O empoderamento possibilita a aquisição da emancipação individual e também da consciência coletiva necessária para a superação da dependência social e dominação política. O empoderamento devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro.

Lembrei que tinha visto recentemente em um programa de televisão, algumas artesãs do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, “traduzirem para o mineirês” o conceito de empoderamento, já traduzido do empowerment, em ingês, como empodimento, significando “nóis podi”. Perguntados sobre “o que vocês podem”, os mais de 60 participantes elencaram as decisões que podem tomar livremente e as atividades que têm autonomia para realizar.

Por fim, definiram quais são os próximos passos que precisam dar para a continuidade do processo de fortalecimento de sua organização e de seu “empodimento”. Serão apoiados por outro programa que será iniciado neste mês, com duração prevista de quase dois anos.


Avaliamos que os avanços foram significativos no primeiro ano desse processo. Estamos apostando que nos próximos dois serão mais significativos ainda.